Neuton Corrêa*
A crônica de hoje seria “A passageira da calcinha furada”, mas a morte do Fuleiro alterou meus planos. Ele passou mal na quarta-feira (12) e, na sexta-feira (14), partiu para o descanso eterno. Soube da gravidade do quadro clínico do amigo, minutos antes de ele perecer. Eu havia acabado de embarcar no 350, com destino à rodoviária de Manaus, de onde pegaria outro busão para o Município de Presidente Figueiredo.
Quem ligou dando a notícia do Fuleiro foi o “Ministro da Educação” (em breve contarei a história desse outro meu amigo). Pelo tom das primeiras palavras, imaginei o ministro apertando a boca para falar: “pô, cara… pô, tu sabes o Fuleiro?”. Sim, respondi. E o Ministro continuou: “Pois é, bicho. Acho que agora ele não vai escapar, não. Estou no lado dele. Talvez um milagre.”
Aquela notícia me deixou pensativo no busão. Há dois anos, Fuleiro passou uma temporada em casa, depois que perdeu a perna direita na luta para conviver com o diabetes. Na ocasião, depois de recuperado, fiz uma crônica para contar os bastidores da cirurgia dele e prometi não mais falar mais de meu amigo nesta coluna.
Mas, senhores, o que tinha a ver o Ministro me ligar na hora da viagem? Ainda no 350, tinha dúvida: uma voz me dizia: “escreve não” e outra atentava: “não perde a oportunidade”. Meia hora depois da primeira notícia, o Ministro voltou a me ligar anunciando: “O Fulero acabou de morrer”. Então, vou contar:
Fuleiro era o Roberto Paiva. Até 1994 era conhecido apenas como Bequinho. Em algumas situações, a antonomásia ganhava até sobrenome: Bequinho da Catedral, Bequinho da Jumac e Bequinho da rua Cordovil. Era um meio-campo nato. Foi ele que inventou o passe-drible, antes de o jogador Ronaldinho Gaúcho popularizá-lo. No campo dos padres, ele olhava para um lado, balançava a cabeça e os ombros e, com desprezo, tocava a bola noutra direção.
Bequinho ganhou o apelido Fuleiro por uma questão óbvia. Ele era “Fulero”, mesmo. Para você ter uma ideia, sempre que ia a algum enterro, nunca saía de lá sem uma piada. Talvez, por isso, sua morte tenha virado um acontecimento bem humorado para seus amigos.
A Darci, minha esposa, por exemplo, assim que falei para ela que o nosso amigo havia morrido, ela pegou o celular para avisar outras pessoas. Nessa hora, correu os nomes da agenda eletrônica, olhou para mim, riu e disse: “E agora, o que faço? No meu celular está escrito ‘Fuleiro Vivo’. Eu coloco ‘Fuleiro Morto?”.
Depois da Darci, veio o Gersinho, que disse: “Leeeeva, filho da mãe”; em seguida, avisei dona Maria, mãe do Neil, que mandou ver: “Eu já esperava, meu filho. Se era pra ele estar sofrendo só com uma perna, é bom que ele descanse mesmo”. Uma mulher que estava me ouvindo no ônibus, perguntou: “Seu amigo morreu?” Respondi que sim, contei o drama dele e ela: “Com essa doença ninguém brinca. Por que ele não fez pacto com Deus?”.
Avisei o amigo Juveco e ele replicou, incrédulo: “nãããããoooo! Tu tá mentindo”. E insisti, informando que não fazia uma hora que nosso amigo havia passado, e ele: “Tu tá será “balado”. Todo mundo pode morrer, menos o Fuleiro”. O Manuel, professor Manuel, como gosta de ser chamado, retrucou: “Que fuleragem é essa do Fuleiro? Como é que o Fuleiro morre sem avisar a gente?”.
Mas, nem tudo virou piada. Percebi isso, quando liguei para o Mailson, dando-lhe a notícia:
- Miguinho, o Fuleiro morreu.
Esperei a resposta, mas nada escutava, além do silêncio. Porém, depois de algum tempo, ouvi uma voz trêmula e lhe indaguei:
- Você está chorando, Miguinho? E ele:
- É, Miguinho, me deu um aperto no meu peito, porque tu sabes: “O Fuleiro era Fuleiro”.
Roberto Paiva morreu e ainda hoje não sei a idade dele. Uma vez me falou de quarenta e poucos anos; noutra, cinquenta e poucos, uns diziam que ele tinha sessenta, enfim… Por muito tempo, foi regente do coral da Catedral de Parintins. Ajudou a fundar o grupo musical “Canto da Mata”, cedendo (escondido do padre) instrumentos da igreja para os ensaios. Adeus, Fuleiro!
*Escritor, filósofo.