Neuton Corrêa*
A comida deveria estar deliciosa. Sim, acho que estava! Daquelas que se prova e se exclama demoradamente: hummmmm!!!!!! Tão gostosa que colher e garfo eram dispensados. A mão parecia fazer parte do tempero! Lambuzava-se o que podia, chupavam-se os dedos, um a um, e encerrava-se a bocada com punhado de farinha amarela sacudido na palma da mão e atirado precisamente para a boca.
A comida estava quentinha, pegando fogo. Tudo preparado na hora. Caixas de verduras e pedaços de madeira que batiam as escadarias da Manaus Moderna com a dança das águas do rio Negro transformaram-se num braseiro, arrumado em um fogareiro improvisado com a ponta do concreto e um pedaço do ferro da armação de uma das escadas interditada pelo abandono do lugar.
Ali, com o fogo ardendo e sobre uma trempe retirada detrás de um dos armários que se perfilam na extensão do muro de arrimo (uma espécie de vestiário público ao ar livre), vinte e um peixes foram colocados por três homens para assar. Eram três rapazes de físico rústico, sendo que um deles, com tatuagens em várias partes do corpo, enxergava apenas com um lado do olho. Percebi isso quando ele mirou para o alto do muro na minha direção.
Ele não falou nada. Apenas olhou para mim. Naquela hora, pensei que levaria uma bronca por estar fotografando cada cena que eles protagonizavam na frente de dezenas de embarcações de linha e sob olhares curiosos.
Depois que o peixe só dependia do fogo, dois dos homens saíram da beira do fogão e voltaram logo: um trouxe uma sacola com farinha, e outro, outra sacola com cheiro-verde, pimentão, cebola e tomate. O tatuado, que havia ficado, puxou uma caixa de madeira e, com o fundo para cima, armou a mesa rente ao chão para servir o banquete.
Dava gosto vê-los comer, indiferentes ao público que lhes assistia. E, mais animada ficou a comida, quando outros rapazes se aproximaram para participar da refeição. Um deles se ofereceu para entrar na festa perto de mim, no parapeito do muro. Para baixo, ele gritou: “É bico seco?” E o tatuado, com a boca ocupada, olhou para cima e fez sinal com a mão para ele descer.
Confesso que nesta hora tive também vontade de saber se era bico seco, mas segurei a tentação de me acocorar junto a eles e provar da comida. Não faltava nada: lá estavam o peixe, o sal, o vinagrete, a farinha e limão à vontade para dar a última gota do tempero à comida.
Mas, senhores, não era somente eu que desejava a comida dos homens da beirada. Um picolezeiro que parou o carrinho ao meu lado fez uma observação: “Aí, só tá faltando pimenta”. Ele tinha razão: peixe assado sem pimenta seria como tomar mingau de arraial sem pó de canela.
Depois do picolezeiro, passou uma mulher carregando uma valise que parou, sorriu e comentou: “isso é bom no tucupi”. Era outra coisa que eu não havia pensado. Aquele peixe, assado do jeito que estava, bastava mergulhá-lo no tucupi, com um pouco de jambu, para ficar completo.
Assim que ouvi o comentário, desci correndo a escadaria para fazer o que deveria ter feito uma hora antes: entregar encomenda no barco. E, quando voltei, pensando sentir gosto de cebola, cheiro-verde, limão, pimenta e farinha na minha boca, atravessei para a Feira da Manaus Moderna e entrei no portão A, já imaginando o cheiro que o bodó (acari) iria exalar dentro do busão.
E assim agi.
Filósofo e escritor.