Neuton Corrêa*
Esta semana, lendo, ouvindo e escrevendo notícias sobre o troca-troca de partidos, lembrei-me da fala de uma passageira a bordo do 423. Pelo que dava para entender, ela queria trocar um aparelho de tirar sangue por duas caixas de frango.
A mulher era a imagem da angústia. Ela estava meio sentada. Sim, meio sentada, é isso mesmo. Nesse caso, a expressão “meio sentada” não é figura de linguagem para dizer que ela estava mal acomodada. É que o tamanho dela, principalmente a largura, só lhe permitia colocar uma das duas partes globosas da porção inferior do dorso (tradução: bunda) sobre a cadeira do busão.
Quando embarquei, na Avenida Umberto Calderaro, à altura do Manauara Shopping, a mulher já estava meio sentada e com um aparelho de telefone celular ao ouvido. Decompondo-se como água de seu estado sólido para o líquido, ela abanava a gola da blusa para tentar aliviar a quentura daquela tarde de sábado de calor tempestivo nesta época do ano. Cada vez que tirava o celular da orelha, sem falar nada, suspirava e sacudia a cabeça negativamente.
Vendo a inquietação da passageira, dei um jeito de me aproximar dela para observá-la melhor. Contei uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, até perder as vezes da frequência com que ligava e desligava o telefone para em seguida enxugar o suor do rosto com as mãos e resmungar.
A angústia da passageira me fez lembrar situação parecida que vivi em 2005 e para a qual a única solução ao meu alcance era um aparelho celular. Foi numa viagem a Presidente Figueiredo, no início de maio daquele ano. Havia sido deslocado para lá para entrevistar um ministro de Estado que estava em visita ao município. Tudo dava certo até encontrar o ministro dos Transportes.
O problema foi que o ministro só aceitou conceder a entrevista dentro do carro dele. Essa informação passei ao motorista que me acompanhava, que seguiu o carro ministerial por toda a cidade, mas, nos primeiros cinquenta quilômetros da viagem de volta para Manaus, desistiu do combinado achando que eu já havia desembarcado sem que ele percebesse.
Eu, porém, sem saber disso, desembarquei após a entrevista, ainda achando que seria resgatado pelo parceiro de trabalho. Iniciei caminhada de volta para Presidente Figueiredo acreditando que me encontraria com o motorista. Pedi carona várias vezes, em vão. E andei um, dois, três, quatro, cinco, seis… oito, dez quilômetros até encontrar um morro bem elevado.
O barranco era minha salvação. Escalei-o como alpinista habilidoso na esperança de que ali, no ponto mais alto daquele trecho da estrada, pudesse obter sinal de telefonia e deu certo. Lá, no topo, o aparelho registrava um ponto, ponto suficiente para ligar para a redação, mas, senhoras e senhores, liguei uma, duas, três, quatro, cinco…; liguei para um colega. E nada!
Relembrando essa história voltei a olhar a mulher. Já estávamos perto de minha parada, na rua Timbiras, quando a ouvi, eufórica: “Branca, pelo amor de Deus, sou eu. Me socorre, Branca”.
Eu já estava pronto para desembarcar, mas segui a viagem só para tentar descobrir a razão de tanta angústia, quando ela falou: “Branca, minha amiga, tu sabes que eu fui ali na feira vender um aparelho e não consegui e eu, agora, estou precisando desse dinheiro. Tu compra ele de mim”.
Depois disso, ela fez uma pausa na fala e depois continuou: “Não, é um aparelho de tirar sangue. Tô vendendo por cem reais, mas eu faço pra ti até por oitenta reais; tu me dá cinquenta agora, depois me dá o resto”.
*Filósofo, escritor, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Ufam.