Neuton Corrêa*
Era fim de tarde de sábado, voltava da zona rural e havia parado em uma feira à beira da rodovia Manoel Urbano, atraído pelo alaranjado do maracujá do mato que se destacava entre melancias, bananas, ingás, cachos de pupunha e trabalhadores que saboreavam churrasquinho de gato com farinha amarela no copinho, quando o fanho veio em minha direção e, à queima roupa, disparou um pedido: “Senhor, me dê um dinheiro para eu comprar passagem pro Cacau Pirêra?”.
Não pense que foi tão simples para mim, no primeiro momento, entender o que ele havia dito. Levou algum tempo. Na hora, entendi apenas o “senhor”. Pedi que repetisse, e nada. Depois, compreendi que ele queria dinheiro e, por fim, com a ajuda de dois amigos, que ele queria chegar ao Distrito de Cacau Pirêra, distante dali, mais ou menos, três quilômetros.
O fanho entendeu que lhe pedia para repetir a pergunta não por zombaria, mas porque a comunicação entre nós estava precária e ele mesmo tratou de explicar que falava com dificuldade. Imagine: o fanho reconhecendo a dificuldade de falar: “Senhor, desculpa, não estou conseguindo falar direito por causa disso aqui”, disse, levantando o lábio leporino com as mãos para mostrar os pontos de uma cirurgia que parecia ter sido feita poucos dias antes. “Senhor, estou fazendo cirurgia. O senhor vai ver: ‘eu vou falar melhor’”.
Embora tivesse me convencido da recente cirurgia, outra coisa me intrigava: o fanho estava com o rosto negro do sol e brilhava muito, o que me fazia desconfiar que ele tivesse, ali, tentando levantar algum trocado para beber mais à frente. Então, voltei a perguntar:
- O que você quer mesmo?
- Senhor, quero chegar no Cacau Pirêra.
E eu, impondo minha arrogante convicção de que estava sendo enganado, sentenciei:
- Quer nada, rapaz! Você quer é beber…
Mal acabei de falar, o fanho, olhando nos meus olhos, começou a lagrimar e a falar:
- Senhor, pelo amor de Deus, eu não estou mentindo não, senhor. Senhor, eu estou vindo andando de Manacapuru. Fui atrás de trabalho. Estou há dois dias andando e agora eu só quero chegar ali no Cacau Pirêra, pra amanhã cedo eu continuar andando.
Meu coração amoleceu. Ele ainda queria continuar falando, mas o interrompi, oferecendo-lhe o maracujá do mato e uma lata de refrigerante, ao mesmo tempo em que imaginava os 80 quilômetros que ele havia percorrido a pé.
Depois de conversar melhor com ele, descobrir que o fanho se chamava Manoel Carlos do Amaral, que, apesar de aparência mais adulta, ainda era um jovem de 22 anos de idade, nascido em uma comunidade indígena do alto Juruá e que ficou órfão de mãe horas depois de nascer, e de pai, aos quatro anos de vida, quando foi trazido para Manaus.
Ouvindo o relato ainda na beira da estrada, notei que o Carlos embargou a voz e nublou os olhos, quando falou do pai. Então, quis saber a razão e ele prontamente:
- Senhor, por causa de mim, meu pai não existe mais.
- Como assim? – intriguei-me.
- Senhor, meu pai tinha vergonha de mim e toda vez que ele bebia ele chorava muito. Foi minha avó que contou. Na última vez que ele chorou foi assim: ele colocou a espingarda bem aqui (mostrou o dedo indicador direito debaixo do queixo).
O Carlos não conseguiu concluir o raciocínio e eu fui levá-lo aonde ele queria, no bairro São José Operário, distante de onde o encontrei mais ou menos 40 quilômetros.
*Filósofo e escritor.