Ivânia Vieira*
Nas ruas da cidade já não posso andar. Quem sou? Gente ou qualquer coisa sem importância? Afinal, quando não se tem mais o direito de andar no lugar onde você vive é porque algo grave aconteceu e os direitos foram retirados.
É assim que uma multidão de nós, no Japiim, no Jorge Teixeira, na Colônia Oliveira Machado se sente.
Tente ir e vir nesses locais e veja qual é o resultado dessa experiência. Calçada ainda se constitui em conquista distante e, por isso, estrangeira para muitos. As que existem estão privatizadas pelos que se assenhoraram delas e determinaram os códigos de acesso. Uns podem usar esses espaços, a maioria não. São correntes, em preto ou em cores, peças de concreto ou de ferro atuando como muros de proteção do quê? Do espaço privado se sobrepondo ao público.
Esses pequenos muros, alguns bem cuidados outros descuidados, grosseiros, terríveis, continuam em expansão acelerada, colocados por moradores de casas e de apartamentos ou pelos donos de pequenos e grandes negócios (dos que vendem os ‘churrasquinhos de gato’, frango assado aos que vendem material de construção, água, gás…).
A normalidade dessa usurpação de um direito fundamental dos humanos é uma catástrofe em Manaus, onde o pedestre descobre-se impedido de andar. Só o faz se morador das áreas nobre da cidade. Nessas regiões, não falta energia elétrica e a iluminação é farta, bonita; as calçadas são largas e bem cuidadas; há jardins e inexistem muros (porque o muro maior determinou quem pode e quem não pode usufruir desses espaços).
Uma minoria da população tem esse direito. Para esse grupo, os governos estão atentos, criam pistas de conforto, não descuidam do asfalto, da pintura dos espaços nem do podamento adequado das árvores. São ilhas afrontando a todos nós.
Se a política dos governos repete-se na atenção aos privilegiados, do nosso lado, vítimas dessa política, a reprodução desse jeito de viver faz escola e demonstra a fragilidade da cidadania. O Japiim que o diga. Ande nesse bairro. Ao final, se não sofrer um acidente ao tentar transpor buracos nas margens da pista e os obstáculos nas calçadas, pode se considerar uma pessoa vitoriosa. Sobreviveu a uma guerra. São casas bonitas, com ruas sujas porque prevalece a noção do “cuido até aqui, o resto não é mais comigo… é resto”. Por fim, todos decretamos que nossos vizinhos, os moradores do lado, e os visitantes são pessoas-restos.
Orgulhosos dessa conduta, estamos todos os dias decretando e alimentando as impossibilidades de uma convivência mais saudável. Nos tornamos cúmplices das políticas segregacionistas dos governos, com o dedo em riste e a impáfia da ignorância em seu melhor estilo.
A cidade chora e pede clemência. Tenta avisar que mantido esse comportamento tanto ela – cidade – quanto nós – gente portadora da capacidade de construir, de promover mudanças – não teremos chance de viver com decência e dignidade. Nem o povo das ilhas nem o povo fora delas. Todos serão atormentados cotidianamente. Alguns em grau menor, com direito de escapulir e morar por temporada em Nova Iorque; a maioria se digladiando na violência urbana que nos iguala.
Dessa guerra não escapa ninguém, nem os que adoram a Deus e ostentam suas bíblias ou terços mas zerando um comportamento cidadão nem os que se orgulham de ser ateus: somos todos cúmplice de uma lógica da perversidade humana.
* A autora é jornalista, professora no Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).